quinta-feira, junho 10, 2010

Uma Versão



Oito anos juntos e ele vira a cara pra ela desse jeito. Não, não é possível que seja aquele mesmo cara que mandava bilhetinhos dentro dos livros, que dividia as contas e a cama. Mas sim, é possível, ele entrou no restaurante, viu que Júlia estava ali e virou rápido o rosto pro outro lado. Entrou, serviu rápido a comida e foi se esconder num canto lá fora, onde não seria incomodado com a visão da ex e do atual marido. “Rodrigo, que horror, será que ele ficou sem jeito por tua causa? Nem um oi! Que absurdo!”

“Pois é, e você fala bastante nele. Eu bem que queria ser apresentado. Vamos ir junto quando ele for pagar no caixa?”

Era pra continuarem comendo, mas Júlia ficou sem fome naquele dia. Não que tivesse qualquer sentimento diferente de um carinho distante pelo ex, mas ser ignorada por uma pessoa com quem conviveu tanto tempo definitivamente não estava nos seus planos.
Por isso, juntou coragem e decidiu: “Digo, ele não vai ao caixa tão cedo. Vamos lá fora dar um oi?” “Ah, Jú, eu até forçaria de leve um encontro, mas ir até lá falar com ele... é demais pra mim. Mas vai lá, você fala bastante nele, se não for depois vai se arrepender. Vai, eu fico tranquilo”.

Júlia deu um beijinho gostoso no seu marido compreensivo. Como é bom ter alguém querido e maduro ao lado!

Pegou o corredor e caminhou até a última mesa do restaurante. Olhava para o ex, tentando algum sinal pra se aproximar. Ela teve que contornar a mesa, chegar do lado dele, tocar no ombro e dizer “oi”. Só então ele virou o rosto e retrucou “oi”, sem sequer esboçar um sorriso. Tinha visto fantasmas. Seu rosto estava branco, suas olheiras saltavam, os sinais de catatonia eram visíveis. Ela tentou mais: “você não ia me cumprimentar? Dá um abraço!” Ele levantou, abraçou com a ponta dos dedos, com a distância de umas duas cidades entre os dois. Ele virou para a direita e finalmente explicou onde estava o fantasma: “Essa é a minha mulher, Giovana”. Júlia foi simpática, tentou se apresentar, mas a mulher começou um diálogo bizarro que ninguém entendeu. “Já te conheço há muito tempo, tu sempre se mete na minha vida” “Como assim, eu sou casada, vim só dar um oi, nunca te vi”. Mas a mulher já tinha levantado, saído correndo, estava longe. E o cachorrinho atônito, claro, tinha ido atrás. Júlia pediu desculpas aos outros dois homens presentes na mesa, mas eles também não olharam pra ela.

Saiu dali com pressa, e nem precisou explicar a Rodrigo o que tinha acontecido. No estacionamento do restaurante se ouviam gritos, xingamentos e talvez até um tapa ou outro.

Desculpa, nossa, mil desculpas. Era só o que Júlia conseguia pensar. Não quero atrapalhar a vida de ninguém! Que vergonha, que mico, quero sumir.

Mas os sentimentos oscilavam. Mais tarde veio a raiva, vontade de escrever ao cretino. Seu corno de merda! Você é um incompetente, não sabe lidar com as mulheres, por isso nós cagamos em você.

Outra hora só chorava. Puxa vida, eu não fiz nada pra ele, e de repente ele não pode nem falar comigo... Eu não quero nada, to bem com meu maridinho, era só um olá, como vai, saber se ele tá bem. Ops, já sei, não, não tá.

Pensou também em escrever para a mulher. Explicar que não quer mais nada com ele, que tá muito bem casada, que entende o que é sentir ciúmes. Aliás, Júlia ficou tocada com isso: foi a primeira vez que não foi ela a ciumenta, que outra pessoa fez fantasias sobre ela. E fantasias tão infundadas... “Nossa, como a mente cria histórias”.

E é isso, a história está criada. Na verdade, várias delas. Em cada um dos personagens, uma história, uma vida, um repertório. Cada um contaria a seu modo, cada um entenderia do seu jeito. Com seus ciúmes, suas mágoas, sua curiosidade pelo ex da namorada ou simplesmente um carinho pelo ex. Essa é a versão de Júlia.

quinta-feira, maio 06, 2010

Medíocre



Ela jura que não é hipocondríaca. Além do anticoncepcional e do antidepressivo que toma todo dia, não sai de casa sem sua farmacinha básica. Remédio pra dor de cabeça, costas, gases, cólica, alergia, enjôo e um tarja preta pro caso de tristeza emergencial. Praticidade, nada mais.

Assim como as várias carteiras e nécessaires dentro da bolsa. Uma de pano só para cheques e cartões fidelidade (quantos!). Numa outra, toda lindinha, vai dinheiro, cartões de crédito e documentos. Moedas têm seu próprio compartimento, e por aí vai, muitas bolsinhas, tranqueiras mil. Tudo muito prático, muito organizado. Agora experimente pegar 10 pilas. Já sabe onde vai procurar primeiro?

Sua maior loucura é a estante com os livros. Vez por outra passa, olha, volta. Fica absurdamente indignada quando uma visita insensível entra na casa e ignora essa biblioteca tão linda e colorida, não comenta um livrinho sequer. Mas ok, entende que existem pessoas frias e sem coração. Como aquelas que não devolvem seus livros mais amados. Até hoje chora pelo seu livro preferido, “Quando me tornei Estúpido”, que foi e não voltou. E sorri contente sempre que um amigo assina com um comentário um livro seu que pegou emprestado, uma prática que inventou e segue como tradição milenar.

Anda pela casa e vê objetos que comprou nas viagens com o marido. Um telefone vermelho antigo, uma máquina lomográfica, um cofrinho bizarro. Lembra que ela sempre dá preferência para as coisas práticas, úteis, e ele quer o lado lúdico, a beleza. E foi numa dessas que decidiram comprar em Copenhagen uma cortina estilo anos 70 que lembrava muito a amada Berlim. O excesso de peso não foi problema. Quem traria um gato persa da Europa certamente não se incomodaria de trazer mais uma cortina, não é mesmo? E assim vieram, com um gato dopado, o único da família detentor do tão sonhado passaporte europeu, duas malas gigantes e duas mochilas bastante estufadas. Ainda despacharam umas duas malas pelo correio. Não é todo dia que se mora na Europa, e eles são bons nisso de aproveitar (e gastar) tudo o que podem.

Ela tem um carrinho prata que acha fofo e muito queridinho. Assim mesmo, coisa de mulherzinha. Mas a limpeza nunca está à altura destes elogios. Não que seja suja, que não ame ver seu carro limpinho e sem lixos espalhados pelo chão. Mas alguma mania idiota dessas que ela inventa a impede que passe numa lavação e faça o serviço rapidinho.

O iPhone já se incorporou à sua vida. Como trabalha fora de casa, precisa estar sempre atenta aos e-mails. Especialmente pra dar vazão à outra pequena mania: seu pavor, seu pânico, sua total aversão a falar no telefone. É assim, simplesmente congela, não sabe o que falar, não sabe o que decidir. Então responde rapidinho o e-mail e evita vários telefonemas. Topa pedir uma pizza, até aí tudo bem. Mas quando um amigo liga e pergunta o que está fazendo, pifa.

Seu computador é organizado do seu jeito, aquela coisa meio maluca estilo as bolsinhas dentro da bolsa. Tudo é muito controlado, muito arrumado, de um jeito próprio que só ela sabe conduzir. Assim consegue lidar com a grande bagunça interna, com tudo o que vai e volta, com tanta informação e pensamento, tantas manias e loucuras, tantos altos e baixos que vem e vão, tantas críticas a si mesma e a sensação de estar sempre sendo observada.

E o pior desses olhares, com certeza o mais rígido, como você pode notar, é o dela.